O caminho menos viajado
Quando se fala de escolhas, não será novidade dizer-vos que a vida é feita disso mesmo; opções e momentos decisivos que nos levam, ou não, até onde queremos chegar. O que conseguimos na vida será, em parte, resultado dessas muitas variáveis que (ainda) conseguimos controlar.
Não tendo a oportunidade de escolher o meio onde nascemos, diria que muito do que fazemos daí para a frente (mas não tudo, atenção) resulta dessa variável. Se nascemos numa típica família portuguesa de classe média, o nosso destino não será muito diferente disto: fazemos o ensino obrigatório, seguimos para o ensino superior e daí vamos para o mercado de trabalho, com a esperança de encontrar um bom emprego, que traga a ambicionada estabilidade financeira. Se não nos metermos nas drogas e acabarmos a arrumar carros no Cais do Sodré, é basicamente isto que nos espera, com mais ou menos mestrados ou doutoramentos ao longo do caminho.
A verdade é que, tirando algumas excepções, não tem havido grande variação nesta lógica de crescimento e desenvolvimento escolar e profissional desde há, diria eu, duas gerações. Ainda que nos últimos anos tenhamos assistido a dois fenómenos que são uma novidade em Portugal – universitários que vão para fora estudar ao abrigo do programa Erasmus, abrindo horizontes e fugindo um pouco a esta estrutura de crescimento “pré-fabricado”; e a febre do empreendedorismo, que pela sua complexidade será tema para um outro post; parece-me evidente que vivemos obcecados com as nossas profissões. Com a devida ressalva para os perigos das generalizações, diria que hoje em dia, mais do que aquilo que fazemos, o nosso trabalho tornou-se naquilo que somos.
Reparem que sempre que estamos numa situação em que conhecemos alguém pela primeira vez, e queremos saber um pouco mais sobre ela, uma das primeiras perguntas que fazemos (senão mesmo a primeira) é exactamente: “o que fazes?” ou “trabalhas em que área?”. Podíamos perguntar sobre as viagens que já fez, quais os hobbies de eleição, os filmes ou livros preferidos, mas não. Uma das primeiras curiosidades que queremos ver respondidas é exactamente “qual é a tua profissão?”, como se essa informação fosse fundamental para avaliarmos o carácter daquela pessoa que está diante de nós. Mais do que a simples curiosidade, tornou-se numa espécie de teste psicotécnico invertido (diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és).
Por mais estranho que possa parecer, o que fazemos profissionalmente acaba por nos definir como indivíduos. Pelo tempo que passamos a trabalhar, que é bastante, pelo envolvimento emocional que criamos com os assuntos de trabalho e pela disponibilidade total que, ao que parece, temos de ter para com o trabalho e a entidade patronal (sob pena de sermos acusados de não nos esforçarmos), parece-me evidente que estamos a caminhar para um lugar estranho.
Um lugar onde “roubamos” tempo à família porque estamos demasiado ocupados a trabalhar para sermos super bem sucedidos e ganhar muito dinheiro para, no final das contas, gastarmos uma boa parte desse mesmo dinheiro para pagar a alguém que tome conta dos nossos filhos. Um lugar onde, quando não temos família e estamos a dar os primeiros passos na profissão, parecemos competir para ver quem sai mais tarde do escritório. Onde nos queixamos num misto de resignação e um certo orgulho idiota de termos passado o fim de semana a trabalhar. Onde fazemos o mesmo se estamos há mais de um ano sem férias, por exemplo.
Que lugar é este que cria esta dinâmica em que somos definidos pelo que damos ao nosso trabalho e pelo que fazemos, e menos - muito menos - por aquilo que somos realmente e pelos valores que conseguimos passar aos nossos filhos? E quantos de nós estão disponíveis e sensíveis ao tema o suficiente para inverter esta tendência? Quantos de nós, tendo percepção de que vivem uma vida cheia de muita coisa, mas vazia de tantas outras, percebem que se calhar não estão a fazer exactamente aquilo que sempre sonharam fazer? Sim, esse é um outro problema deste “lugar”. Depois de termos cumprido todas as etapas do tal “crescimento pré-fabricado”, depois de termos feito tudo o que esperavam de nós, muitas vezes damos por nós a fazer algo que não nos apaixona e que, ainda por cima, ocupa demasiado do nosso tempo. E o que fazemos nessa altura? O mesmo que fazemos sempre: aguentamos porque somos fortes, e é assim que é “suposto” ser. Será mesmo? Seremos mesmo? Ou seríamos mais fortes se tivéssemos a coragem de “virar a mesa”? De começar de novo, mas agora a sério. Com paixão e equilíbrio. Paixão no que fazemos e equilíbrio na forma como o fazemos.
Ok, será uma utopia pensarmos que todos podemos fazer exactamente aquilo de que gostamos e ainda sermos pagos por isso, mas em que altura da nossa vida devemos deixar de acreditar nisso? Em que momento de toda esta pré-formatação é que nos colocaram esta trela invisível que nos afasta do caminho menos viajado?
A verdade é que queremos o mundo mas não estamos sequer dispostos a ir até ao fim da rua para perceber se haverá outro caminho a seguir. Não necessariamente melhor, mas com certeza diferente. Temos medo do escuro, do incerto, do abismo, do caminho sem trilho. Queremos o arrumadinho, o ordenadozinho, o subsidiozinho de férias, de natal, etc e tal. Queremos os direitos adquiridos e os que estão para vir. Neste caminho para o sucesso, não admitimos o que achamos ser o insucesso da dúvida, de nos questionarmos se é mesmo por ali que queremos ir. Preocupamo-nos com o que os outros vão pensar, sem pensar no que pensamos de nós próprios. O que diria o Eu, se fosse Tu? Meus senhores, ser Homem também é isto. Questionar, duvidar e decidir. Não ter certezas, mas seguir em frente. Não estar satisfeito e mudar. Sentir medo e, mesmo assim, ir. Onde? Ao fundo da rua. Trilhar o caminho menos viajado. Caminhar por onde está escuro, mas sempre em busca da luz. A nossa luz, não a dos outros.
“A dúvida é o princípio da sabedoria.” Aristóteles