O amor é cego? A Netflix diz que sim.
Tropecei no “Love is blind” - um reality show que a Netflix estreou no mês passado - por acaso. Mas não foi por acaso que fiquei a ver.
Confesso o meu fascínio por tudo o que é interacção humana, sobretudo aquelas que nos permitem, como espectadores, perceber e identificar os diversos tipos de pessoas que vamos conhecendo ao longo da vida. Mas já lá vamos. Para já convém dizer que aqui não há agricultores à procura de noivas nem casais que se conhecem no altar. Mas há amor que “nasce” e é incubado em cápsulas, o que é mais moderno, convenhamos, e mais apropriado a uma plataforma como a Netflix.
Há algum tempo que muitos dos reality shows adoptaram o epíteto “experiência social” e, neste caso, a coisa até não andará longe da verdade. Ora, esta experiência começa com duas casas contíguas, uma para os homens, outra para as mulheres. Ao meio, uma mão cheia de cabines (cápsulas) com uma porta para casa lado da casa. Dentro de cada uma das cápsulas há sofás, mesas, e até algo para beber, no sentido de proporcionar aos concorrentes o ambiente ideal para se sentirem em casa, descontraírem e, claro, se soltarem. Afinal, é ali que se vão dar os dates.
Há, no entanto, uma particularidade associada a estas cápsulas: os casais “to be” não se podem ver. Ou seja, a ideia é que se conquistem e acabem por apaixonar-se única e exclusivamente pela sua personalidade. É esta a premissa do programa, uma “experiência social”, recordo. E estes são os nossos “ratos de laboratório”. Voluntários, no caso.
Numa lógica de speed date, os pares vão passando de cápsula em cápsula, de bloco de notas na mão, tentando encontrar o perfect match. É uma espécie de Tinder sem ter que se dar ao dedo, mas com menos escolha, mais conversa e menos fotos em biquini e/ou em frente ao espelho do ginásio enquanto se encolhe a barriga. Tudo a bem da ciência.
Ora bem, o que sucede a seguir chega a ser ternurento. Ao fim de três dias disto, em que se vão eliminado pretendentes, repetindo pares em dates sucessivos, chorando aqui e ali por conta de experiências passadas ou antecipação de experiências futuras, há casais que se vão formando, entre juras de compromissos duradouros e a mais profunda ligação, “como nunca antes haviam experimentado”.
Caríssimos/as, há indivíduos que acabam esta primeira fase - dias (!) depois de ter começado - a dizer que se amam! (Volta Big Brother com os teus célebres “são 24 horas sobre 24 horas” e “Só quem está lá dentro é que sabe”!)
Mas há mais. Até porque as regras do programa mandam que para sair dali os pares têm de ir de casamento marcado. Isso mesmo, o compromisso é sério e há pedidos de casamento com joelho no chão e tudo (com o pretendente a olhar para uma parede). Ou julgavam que isto era só sexo? Ah, espera, eles ainda não se viram.
E assim acontece. No final desta primeira fase há uma mão cheia de pares que se formam e decidem sair como tal. Uma saída precária, tal é o medo de descobrir o que estava do outro lado. O que é resolvido, desde logo, pela produção: um longo corredor com duas portas nas extremidades, que se deslizam para revelar aos noivos a dimensão física da pessoa por quem se apaixonaram. E aqui começamos a ver os primeiros resultados da experiência: todos, sem excepção, se mostraram muito contentes (aliviados?) por descobrir que a sua escolha foi acertada. O que, viremos a saber mais tarde, não é bem assim.
Dali os casais partem então para uma pré-lua de mel num resort no México com o objectivo de se conhecerem “melhor”. E ao fazê-lo vão revelando aquilo que, para quem cá anda há uns anitos, nos parece mais ou menos evidente: estamos longe – muito longe – do avanço civilizacional que nos permitirá dizer que gostamos do outro apenas pelo que ele é intrinsecamente. Claro que isso será sempre essencial numa relação, seja ela amorosa ou outra, mas quando falamos em escolher alguém para passar o resto dos nossos dias, questões como a dimensão física (onde incluímos a aparência, mas também o cheiro – ah, as feromonas! – e até o toque), o background familiar e social, a idade, e a forma como lidamos com temas essenciais como o dinheiro, por exemplo, continuam a contribuir para a forma como encaixamos a nossa vida na do outro.
Podemos ser almas gémeas na forma como gostamos de passar os fins de semana, no número de filhos que queremos ter, na raça de cão que preferimos para fazer pandã com as crianças, ou na forma como vemos a relação com a família, mas há todo um outro mundo de diferenças que se pode interpor entres nós e o “amor da nossa vida”. E não há programa de televisão que mude isso. Mesmo que a “televisão” seja emitida em streaming.
Para desanuviar, fiquem com um apanhado dos casais que mais se destacaram nesta primeira série de “Love is Blind”, com a ressalva de que há data desta crónica, ainda não tínhamos chegado à parte dos casamentos. Ora vejam lá se não conhecem pessoas assim:
Amber & Barnett
Se ela tem a estabilidade emocional de uma montanha-russa, ele parece anestesiado, não se sabe se pela experiência, se pelo facto de ter escolhido alguém que dá a ideia de ter caído no caldeirão dos ácidos quando era pequena. Se tivesse que apostar, diria que vai correr mal. Barnett (até pelo nome) é o típico “all american guy”. Rapaz popular no liceu, na faculdade e na vida, não parece ter motivos para a levar (à vida) muito a sério – e não leva. Parece surpreendido por ter encontrado alguém ainda mais imaturo do que ela.
Amber, aos vinte e poucos anos, tem o sonho de ser uma “stay at home mum", o que quer dizer que não está para trabalhar. Para quem vem com uma bagagem de vinte mil dólares de dívida por conta de um empréstimo para pagar uma faculdade que nunca terminou, não está nada mal. E ele vai descobrindo isto aos poucos, sendo possível perceber-se o entusiasmo a diminuir a cada revelação. Bem-vindo à idade adulta, meu caro, onde o bom sexo não é tudo.
Lauren & Cameron
O único casal inter-racial do grupo. Ela é negra, e gira que se farta, ele parece um “príncipe da Disney” (palavras dela). Para um homem da ciência - o rapaz é “cientista” - parece ter mais emoções do que consegue gerir, o que não deixa de ser um paradoxo. Infelizmente para eles, esse não parece ser o único problema que vão ter de resolver.
Estamos perante um caso claro de mistura de identidades. Ele - o homem - está prontíssimo para assentar. Vive sozinho numa casa com dois pisos e três quartos, pronta a receber uma família que ele desesperadamente quer criar. Ela - a mulher - aparentemente disponível e desprendida, a cada dia que passa parece estar mais incerta sobre essa coisa “assustadora” de perder a sua liberdade. O que poderia ser apenas um detalhe curioso desta história, parece ser importante o suficiente para ameaçar a harmonia do casal: é notório o “desentusiasmo” de Lauren à medida que a data do casamento se aproxima. E esta? A humanidade inteira a achar que são os homens a lidar pior com a noção de compromisso e vem este “tratado científico” provar o contrário.
Para o argumento da “social experiment”, convém também referir a questão racial. Aquilo que para mim seria um não-assunto, no contexto norte-americano para ser algo relevante. O pai de Lauren é um defensor acérrimo da lógica que negros devem casar com negros, o que faz com que não veja com muito bons olhos a chegada de um “branquela” à família. E, sim, isso está a pesar na decisão de Lauren. Será o amor cego e também daltónico? Veremos.
Jessica & Mark
Um casal que quase nem conta para o campeonato, de tão evidente que vai correr mal. Mas pode ser visto como um case study. Senão vejamos: apesar dos 10 anos de diferença (ela tem 34, ele 24), começaram muito bem. Almas gémeas, dir-se-ia. Moram na mesma cidade, gostam de praticar desporto (ele até trabalha na área do fitness), ambos são muito ligados aos valores da família e – caramba – até têm cães da mesma raça. Se isto não é um “match made in heaven” então não sei o que será. Bom... e daí até sei. É uma tontice pegada.
Ele é demasiado jovem e imaturo, e está claramente deslumbrado com tudo isto. Ela é manipuladora e completamente impreparada para lidar com as suas próprias emoções.
Resultado: o pobre Matt é manipulado emocionalmente com a facilidade que se adivinha possível para uma mulher de 34 anos manipular um jovem de 24. Mas não é uma questão de género, atenção. Quem nunca viu uma situação semelhante, mas com os papéis invertidos? Eu já.
Kenny & Kelly
Como se pode perceber pela feliz conjugação dos nomes, são muito fofos, estes dois. Podiam facilmente figurar num anúncio para uma seguradora, num cenário idílico, com uma casa de dois pisos por trás, num relvado bem tratado, cerca de madeira e um golden retriever a correr livremente.
Mas a verdade parece ser outra. Um caso típico, de novo. Ao que parece, o rapaz não corresponde ao estereótipo físico daquilo que têm sido as escolhas dela ao longo da vida. O que, para ela estar num programa de televisão pronta a casar-se com um estranho, parece estar a correr muito bem. Ele é louro, ela prefere os morenos. Ele tem ar de bom rapaz, ela deve preferir os bad boys (quem nunca?). Mas estão a insistir. Dormem juntos mas sem avançar para lá de uns amassos. Diz ela que não quer que uma coisa tão banal, como a relação física, estrague algo tão bom como o que eles têm... Certo! Kenny, se me estás a ler, fica a dica: espero que te estejam a pagar bem, porque dinheiro deve ser a única coisa que vais levar daí.
Giannina & Damian
A melhor forma de vos explicar o que se passa entre estes dois é recorrendo a uma analogia: ela será os Açores, ele o Alentejo. Nela há sol de manhã, chuva à hora de almoço, uma onda de calor a meio da tarde e um frio de rachar de madrugada. Nele há uma planície dourada, onde pouco ou nada se passa, até que se “passa”. E aí vira o fim de Festa do Avante, em versão tumultuosa e truculenta. Fica irritado, tenso e vai buscar coisas que estavam claramente a incomodá-lo, mas que devia ter dito há três dias. Parece-vos familiar? Pois, isto é uma experiência social, lembram-se?
Fiquem com o trailer, mas depois não digam que não vos avisei.