Mulher sem nome
Deixem-me falar-vos da minha avó. A minha avó, que é como se fosse minha mãe, tem 91 anos. Mãe da minha mãe, é “mãe duas vezes”, como tantas vezes nos diz. 91 anos de vida e não tem nome.
Quero dizer, tem. Mas é próprio. Não lhe é de família. Por vicissitudes várias que para aqui não interessam, foi com dois nomes próprios que se fez à vida e assim passou grande parte da mesma.
Casou e descasou, coisa rara para a altura, mas sentida para quem a viveu na pele. Sentida bem fundo até porque lhe trouxe - e depois levou - o apelido que hoje lhe falta. Um sentimento que lhe toca fundo no peito, sabemos nós que a conhecemos bem. Foi assim que a conheci, de resto. Sem nome e sem fortuna. Quero dizer, é dona da fortuna de ter uma família que a ama e lhe quer bem, e isso já é fortuna boa, que a minha avó é de sonhar baixinho. Sempre a conheci assim.
A sonhar baixinho e muito perto. É navegação à vista, mas em sonhos. Vai desejando aos poucos, como quem tem medo de pedir demais. Terá a ver com as origens humildes que lhe roubaram também o nome, mas é assim a minha avó. Só pede para ter saúde. Um ano depois do outro. Uma meta após a outra.
Começou - a parte que lhe conheço, entenda-se - por querer ver os netos “formados”. E assim foi. Depois queria vê-los (bem) empregados e encarreirados para a vida. Tanto quanto isso pode acontecer nestes tempos que nos empurram para a frente sem saber o que vai ser, assim foi também. Seguiu-se o desejo de ter bisnetos. Valeu-me o estatuto de irmão mais novo para assistir a tudo na plateia destes acontecimentos. Dois, no caso. Dois bisnetos depois a minha avó colocou o conta quilómetros dos sonhos a zeros. A zeros não, que há dois dígitos que continuam a contar. Já lá vão 91 anos, mas com os bisnetos vieram novas metas. Crescidos, já lhe passaram a altura. É pequena, a minha avó, dobrada ao passar dos anos, como quem se arruma para ficar cá mais tempo.
Espero que fique cá para sempre. Mas não lhe digam nada. Quero que ela continue a sonhar baixinho. À vista e a ver muito de perto, que a vista cansada já não dá para mais. É assim a minha avó. A minha mãe duas vezes que, afinal, tem nome. É Maria Amélia, a minha avó. O apelido? É Amor.