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Like A Man

01 de Agosto, 2017

As lições que aprendemos na cama de um hospital

Filipe Gil

Janela Hospita São Francisco Xavier LiAM.jpg

Sim o assunto não é muito “cool” mas aqui no LiAM não escondemos que gostamos de retratar a vida tal como ela é. Assim, conto-vos que na passada sexta, dia 21 de julho, sofri (que é bem diferente de provocar) um acidente de mota – mais tarde falarei dele. Esse acidente levou-me a umas três horas no bloco operatório e a passar uma semana inteira no hospital. Mesmo assim, o LiAM gosta de tirar coisas positivas mesmo nas situações mais difíceis, por isso decidi contar-vos a minha experiência e o que se pode aprender numa cama de hospital. Aprende-se muito. Querem saber mais?

 

#As prioridades mudam. Por completo

 

É um novo mundo. Depois de sermos operados a uma perna partida (em dois locais) a nossa mobilidade tal como a conhecíamos muda por completo. Estamos totalmente dependentes dos outros, pelo menos nos primeiros dias. Deitados na cama do hospital, qualquer meia colocada no lugar errado do pé faz uma confusão maior que recebermos uma multa de trânsito. As nossas capacidades diminuem e tudo tem de ser pensado antes de agirmos. Um safanão e os óculos vão parar ao chão. Um movimento mais brusco e as dores são insuportáveis (sim, nós homens somos menos resistentes à dor), uma garrafa mal colocada e, zás, lá vai ela, tudo entornado em cima do telemóvel. E depois à mínima coisa temos de chamar as auxiliares. E aí mais uma vez, as prioridades são diferentes. Há prioridades hospitalares muito mais grave do que apanhar os óculos que caíram ao chão ou afastar as meias do dedo do pé do “menino”…

 

#A privacidade. Qual privacidade?

 

É embaraçoso. Por muito que se tente, num tipo de operação como esta vamos andar a mostrar as partes mais íntimas à maioria das pessoas que lá trabalha. E sem querer. A epidural faz-nos esquecer a quantidade de pessoas que no bloco operatório te viram sem roupa durante tantas horas… e depois há o primeiro banho. Que é na cama, com esponjas, auxiliado por uma enfermeira. No meu caso era nova e engraçada, o que tornou o momento ainda mais constrangedor. Que vergonha tive! Dois dias depois foi uma auxiliar um pouco mais velha, e aí apelamos à memória maternal: “Ok, a senhora tem idade para minha mãe…ou não. Merda!” – “Vá tire os boxers, Sr. Filipe...”.

 

E depois disso, lá vamos nós: colocar pensos, arrancar pelos, e por muito esforço que façamos basta uma meia volta estamos como vimos ao mundo em frente das senhoras.  Uma delas, muito divertida disse para não me preocupar: “Se soubesse o que já vi…”, acrescentou para me ajudar a estar menos envergonhado. Ao 4º dia já nem ligas. Estás com dores, queres é ir tomar banho. Ou estás com dores e queres é que te façam os pensos, rápido. Ou estás com dores e só queres não teres dores. Não se fica desinibido, mas tal como disse antes as prioridades mudam, sobretudo porque passamos a conhecer outros níveis de dor. É disso que escrevo no ponto seguinte.

 

hospital são francisco xavier liam.jpg

 

#A dor. Vamos a outro nível.

 

Primeiro é o pós-acidente. No meu caso não perdi os sentidos, mas percebi que tinha algo preso ou partido. Sim, tinha, o fémur em dois locais. O simples endireitar da perna pelos bombeiros rebentou com o meu nível de dor conhecido nos meus 43 anos de vida. E depois de maca em maca, de raio x em raio x, até à epidural minutos antes de operação, tudo o que mexia à minha volta doía. E, atenção, estava com medicação para diminuir as dores. No pós-operatório, passado umas horas de descanso da dor, voltamos ao nível parecido com o acidente. De tal forma que tive de perguntar se a perna continuava partida. Não, claro que não. Mas dói. Dói. Tudo. É tanta dor que nos faz pensar. Tanta dor que quando me arrancavam os pelos com os pensos era quase “refresco” comparado com as anteriores. Fiquei com duas feridas ainda grandes no pé direito. Tocar nessas feridas em termos de nível de dor eram festas com o simples mexer a perna uns simples 0,1111 mm.

 

#O valor dos profissionais de saúde e a vida de hospital

 

Já quase todos sabemos que os médicos salvam vidas, que os enfermeiros trocam pensos e tiram sangue e que as auxiliares ajudam em tudo o resto. Mas salvo as pessoas que têm familiares próximos a estas profissões, o resto de nós não faz a mínima ideia do que estes profissionais são capazes. Os médicos, claro, que fazem o seu trabalho quase milagroso. E no caso de ortopedia, são quase engenheiros que nos tratam do esqueleto. E, senhores, pasmem-se, uma categoria da medicina que há anos era para homens, hoje tudo mudou. Foram duas as médicas que me operaram. Aliás, na mesa de cirurgia só existia dois enfermeiros e um médico anestesista, homens, o resto era tudo senhoras (e eu ali, despido...). De resto, elas mandam nisto! E ainda bem. Por outro lado, os enfermeiros. Ou tive muita sorte no hospital onde fiquei, o São Francisco Xavier, ou então toda a humanização das suas tarefas é fantástica. Todos os enfermeiros e enfermeiras foram sempre simpáticos, cuidadosos, aliás, extremamente cuidadosos, interessados, disponíveis. Uma equipa bem liderada que funcionava como uma orquestra… mas com coração. O que ajuda muito todos os doentes a sentirem-se melhor quando têm de passar dias e dias na cama de hospital.


E as auxiliares?! Têm um trabalho tão duro: servir a comida, mudar a garrafa do xixi, acompanhar nas idas ao WC, ajeitar-nos na cama, arrumar o espaço do quarto, calçar-nos e vestir-nos. E, mais uma vez digo, ou este serviço de ortopedia e traumatologia do Piso 3 do São Francisco Xavier é especial, ou há aqui uma humanização maior nos serviços médicos. E, senhores, mesmo não sendo nenhuns maricas, o bem que sabe. Sim, porque todos estes profissionais sabem ser firmes quando é necessário. Se cheiram que estamos a ser “maricas”, são mais duros e motivadores. E isso faz bem. Estamos debilitados, mas somos homens. Jovens. Muito pior estão os velhotes que por lá andam com coisas mais graves. A velhice, pelo que vislumbrei não são boas notícias, muito pelo contrário...

 

#A valor da amizade é potenciado. Valha-nos isso!

 

Nunca tinha passado por isso. Já tive amigos hospitalizados por breves dias, mas raramente os visitei. Mas sabem que faz toda a diferença para o doente? Naquelas horas em que meticulosamente sabemos que são as horas da visita, ficamos sempre a olhar para a porta pelo canto do olho para ver se chega alguém. E quando chega é uma alegria. É um pouco do mundo normal que nos chega. E é tão bom. Sou um sortudo, tive sempre visitas. Amigos, família, colegas, e nunca imaginei o que isso nos pode dar de alegria. Por isso, se tiverem amigos hospitalizados, por favor, apareçam por lá para dar um abraço. Claro que existem as mensagens por telemóvel, e quando estás com paciência (isto de estar no hospital não são férias) as conversas com os teus amigos dão-te ânimo, fazem-te rir. Mostram a realidade lá de fora a que ficas alienado. A acrescentar isto tudo, tive a sorte de nos últimos dias partilhar o quarto com o João. Um homem experiente, vivido, simpático e que me mostrou que podemos fazer as coisas sozinho mesmo estando com a perna partida. O João também teve um acidente de mota. O seu 6º, se bem me recordo. E ajudou-me muito a passar o tempo com conversas inteligentes. Tive muita sorte.

 

#A vida de hospital é uma azáfama. Acreditem!

 

Quem pensa que estar no hospital é um descanso está enganado. E muito. A vida começa logo pelas 6h30m da manhã. As noites nunca são bem dormidas, pela posição na cama, pelos gemidos de outros doentes, pelas ideias que te passam na cabeça, pelas vezes que fazes xixi, e porque é o momento em que vês e revês o acidente na tua cabeça mil vezes. Pela 06:30 começa uma rotina de: pensos, medição da tensão, temperatura, medicamentos, pequeno-almoço, banho (que demora pelo menos 1 hora, se fores rápido e organizado), tirar protecções do banho para não molhar os pensos e despedir dos pelos que te levam atrás, vestir, despir, receber o médico, ir fazer fisioterapia, tirar sangue e almoço.

 

Quando vês já são 13h e estás a almoçar. Não tiveste tempo sequer para atender os telefonemas dos amigos. Contudo, esta azáfama contrapoem-se com uma velocidade muito reduzida para fazer tudo. Andas leeeeen-ta-me-nte. E vês como vai ser a tua mobilidade quando fores velhinho. E tudo tem de ser pensado, o local para colocar a pasta de dentes, o shampoo, a toalha, tudo tem de ficar perto, mas não demasiado para não te atrapalhar na locomoção. É todo um mundo novo e uma experiência de vida. Confesso que nos primeiros dias urrava baixinho de raiva, sobretudo quando estás a tentar fechar um tubo de creme cuidadosamente e a tampa cai e fica ali no chão a olhar para ti… e tu para ela, sem puderes fazer nada. Até me habituar à velocidade foi muito difícil. Estranho também é quando sais do Hospital para o mundo. A velocidade do mundo é mais elevada do que tu. Por um lado sentes liberdade, por outro sentes-te desprotegido.

 

Antes de acabar estas longas linhas tenho que agradecer à minha família (We Rock!), familiares, amigos, colegas que me apoiaram (eles sabem quem são). E agradecer a forma como fui tratado por todos os elementos do Piso 3 de Ortopedia e Traumatologia do Hospital São Francisco Xavier.

 

 

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