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Like A Man

21 de Junho, 2017

Quando a melhor recordação de uma tragédia é um sorriso

João NC

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É sempre difícil falar (ou escrever) sobre uma tragédia como a de Pedrógão Grande. Infelizmente, temos vindo a habituar-nos aos incêndios de verão. Com o passar dos anos, e a forma recorrente como estes acontecem, vamos ficando menos sensíveis ao tema. Quase como se de uma inevitabilidade se tratasse. Mas não é.

 

Pelas perdas materiais, mas sobretudo pelas perdas humanas, nunca um incêndio pode ser visto como algo inevitável. E no capítulo das perdas, infelizmente, o incêndio de sábado vai ficar na nossa memória por muitos anos.

 

Não sei se convosco terá acontecido o mesmo, mas à medida que os números iam aumentando, foi crescendo uma incredibilidade que se tornou quase dormência. “Não é possível!” foi o pensamento que terá passado pela cabeça de todos nós. Vinte... trinta... quarenta... Mais de sessenta pessoas? Sessenta e quatro pessoas?! Crianças incluídas? Não é possível... Mas foi.

 

No meio deste misto de espanto e choque, lembro-me de ter pensado que num país tão pequeno como o nosso, seria altamente improvável que uma coisa destas acontecesse sem que a tragédia viesse tocar a alguém próximo de nós. Um raciocínio feito desabafo quase estatístico que me estava a sair furado até segunda-feira à noite - não vou dizer “felizmente” porque seria insensível da minha parte, mas a verdade é que acabamos por ficar aliviados por não tocar a alguém que nos é próximo.

 

Mas a contagem ainda não tinha terminado e na noite de segunda-feira fui surpreendido por vários posts de amigos que pediam atenção para a identificação do paradeiro de uma família ainda desaparecida. Um post acompanhado da fotografia do pai, mãe e dos dois filhos pequenos. E lá estava ela... uma cara conhecida. O pai desta família era o Miguel. Sorridente e bem disposto, como me recordo dele, o Miguel da fotografia está feliz ao lado da mulher Mafalda e dos filhos António e Joaquim. Seis e quatro anos de idade, respectivamente. Todos desaparecidos desde sábado, naquele que seria mais um dia de férias em família.

 

Há algum tempo que não via o Miguel, mas recordo-me bem da última vez que nos encontrámos. Usava exactamente o mesmo sorriso da fotografia. Também por isso, a notícia foi como um murro no estômago. Quando, aos números da tragédia, se juntam as faces dos inocentes, a coisa fica ainda mais difícil. Se essas faces nos são familiares, aí sim, percebemos que podia mesmo ser qualquer um de nós. E foi. Foi o Miguel, a Mafalda e os pequenitos. Eram quatro “de nós” que, soubemos entretanto, não sobreviveram...

 

A "dormência" atinge agora outra dimensão. Não é possível... Mais do que um número nesta contabilidade dantesca, esta era uma família em construção. Tinham toda uma vida pela frente. Como outras, que sabemos agora que também pereceram. Depois disto, o que fica? Inevitavelmente, as nossas vidas continuam, os fogos hão-de extinguir-se e as televisões vão, como sempre, encontrar outros temas para abrir os telejornais.

 

Fica uma mágoa imensa, por ver partir não apenas o Miguel, a Mafalda e os pequenos António e Joaquim, mas também o Rodrigo, a Sara, o José, a Joana, e todos os outros que esta inexplicável tragédia nos roubou. O que nos resta? Recordar o melhor de cada um deles.

 

Eu sei exactamente o que vou recordar do Miguel: o seu sorriso. O da fotografia. O da última vez que nos encontrámos. 

 

Até sempre, Miguel.

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